segunda-feira, 11 de julho de 2022

Um inferno

 Um escritor escreve para sua voz ser ouvida. A significância de um escritor é o reconhecimento de sua voz. Uma voz reconhecida significa sair do inferno para ter algum acolhimento, significa gente interessada em ajudá-lo nesse exílio, em sair da opressão que praticamente o obriga a falar, a gritar, a implorar que essa voz alcance alguém. A opressão é como uma mão na garganta que, ao mesmo tempo procura sufocar, também coloca como urgência o socorro, e disso todas as energias são condensadas nesse último som. Assim sendo, todo som, voz, grito do escritor sempre será seu último grito, pois nunca sabe se aquele é de fato a sua última fala, seu último ato de desespero, seu último sinal de vida antes que a realidade imposta lhe quebre, mais do que todos os seus ossos e órgãos, a sua própria dignidade, integridade, alma.


E aquele que não fala nenhuma língua acaba sendo o pior dos escritores: ninguém o compreende e não existe quem o traduza. A língua é a mediação entre o eu e algum alguém. E a língua não significa apenas a linguagem, e sim as normas pelas quais essa língua pode ser reconhecida como uma linguagem. Se as normas lhe fogem ou são incompreensíveis - ou pior: não consegue ter norma alguma - ele será sempre colocado como um estranho por todos e todos estarão, direta ou indiretamente, colocando suas mãos sobre seu pescoço. "A culpa é dele que não sabe como interagir, se inserir". Culpa, culpa, culpa. Não se pode culpar um bebê de não saber falar claramente, não pode pode culpar um bebê de não seguir as normas, de não tê-las em sua consciência e de praticá-las no seu contato, interação, com os outros: é preciso ser responsável com esse bebê. "Mas ele não é um bebê". Vamos inverter a questão: o quanto cada um realmente não é um bebê? Quando que as palavras e as normas lhes são perfeitamente claras e manipuláveis, quando têm absoluto domínio do seu conhecimento e uso? Nunca ocorreu a alguém ser esse estranho? Não saber como emanar a sua voz, não saber quais as normas pelas quais se deve agir, ou mesmo não conseguir dizer algo sem saber se existia uma língua para aquilo ou se não estaria enfim infringindo alguma norma oculta, alguma norma alheia a seu estado de ignorância? Nesse sentido, em algum grau todos somos esse "estranho", esse "bebê" que precisa de um pouco de paciência, afeto, compreensão - mesmo porque, quando não existe nenhum "a" possível de ser dito duma forma compreensível ao outro, o que sobra ao bebê é o choro, são as suas emoções que emergem suas necessidades, seus desesperos, suas urgências: as emoções dizem. E um berro, esse "a" sem sentido claro, tem na sua violência, no choque que gera nos tímpanos, o seu significado: "socorro!".

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