quarta-feira, 1 de setembro de 2021

 O verdadeiro inferno não é o abismo, e sim estar incapacitado de tudo, inclusive de estar no abismo.


Impossível o sentir, impossível o sentido: nem alegria e nem tristeza, simplesmente vaga como uma folha ao vento.

 O exílio é um nascimento forçado para a realidade. Quem exila não suporta a liberdade, então condena o outro ao que considera abominável e espera que o outro não aguente o que aquele mesmo não suportaria.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

 Lembro da Lagoa dos Esteves e de como gostava dos meus passeios solitários. Eu me enfiava no meio da floresta como se não quisesse mais sair de lá. Para variar, sofria bullying das crianças na lagoa, mas na floresta eu era rei. Enchia o pulmão com o ar puro perfumado com o cheiro de eucaliptos, e as árvores se elevavam ao céu azul num agradável labirinto. Algumas vezes ia a pé, outras de bike, e enfim de vez em quando ia com a mãe, seja simplesmente para caminhar com ela, seja para catarmos esterco para a horta. Gostava do cheiro de esterco: cheiro de mato, de um mato defumado (?), e achava divertido estar com a mãe ali: sentia que eu era querido e que poderia ser elogiado pelo que estava fazendo. Via, sozinho ou com ela, coisas interessantes na floresta, como uma vez que nos surpreendemos com uma "folha" que voou e era um bicho perfeitamente camuflado. Também fazia passeios solitários junto a lagoa, achava lindo o pôr do sol lá, gostava também de como parecia alegre em dias de sol e céu azul: lembro dela cristalina, cristalina, e dos pequenos peixes que nadavam no rasinho. As crianças, eu incluso, brincavam de pegar os peixinhos usando garrafas cortadas de plástico e pedacinhos de pão para atraí-los, e depois de capturados os soltavam. Havia uma rampa para o desembarque de lanchas e jet-skis, e um trapiche para pesca e mergulho - nisso havia duas plataformas para salto e inicialmente me assustava de pular da mais alta. Foi lá que aprendi a nadar, ao observar as outras pessoas e receber também certas dicas de como me movimentar (inclusive as mãos, que no início eu batia com força, palmas abertas, na água, sem saber da sutileza necessária para que as mãos entrassem respeitando a água e fluindo com eficiência nela). Lá também certa vez menti, durante uma noite, ter largado uns peixinhos que havíamos capturado - eu e minha irmã - durante o dia: os descartei num bueiro, com medo da intensa escuridão que fazia na lagoa e também com medo dos fantasmas dos aviadores que recentemente tinha sabido terem caído lá no início dos anos 20. A infância é o reino da brincadeira, para o bem e o mal: das fantasias divertidas e das ilusões aterrorizantes. Me pergunto como teria sido a minha vida se meus pais tivessem fixado residência na Lagoa: na maior parte do ano o lugar era ocupado por pouquíssimas famílias, justamente aqueles que moravam lá. Estudavam na Praia do Rincão, um lugar próximo dali: tomavam ônibus para ir e para voltar. O contato teria sido mais intenso: com meus pais, com a floresta, com a natureza, com a solidão, comigo mesmo. Afinal, tudo estaria mais próximo - menos os outros: estes estariam longe e só ficariam lá durante as temporadas. Odiava as outras crianças, odiava principalmente um menino que parecia liderar os outros, me desagradava profundamente essa agressividade gratuita, essa, enfim, estupidez, violência mesmo. Estar com os outros era um inferno, a natureza e o resto do ano eram redentores: havia silêncio, havia paz, e uma calma reinava no meu coração. Talvez meus pais ficassem melhor e tivessem amenizado seus tons autoritários, ou talvez isso teria acelerado sua separação: não sei. Talvez eu me sentisse abandonado com toda aquela natureza e sem saber como lidar com ela; talvez tamanha solidão de morar lá teria apressado meu caminho para a literatura e a reflexão e tivesse me ajudado em meus estudos e meu amadurecimento; talvez eu simplesmente tivesse entrado em depressão ou até me suicidado em meio ao silêncio, como que meus átomos voltando a natureza e ao cosmos; enfim: não sei. Talvez tivesse me aproximado mais de minha irmã, ou talvez ambos descontássemos tudo um no outro e ficássemos competindo ainda mais pela atenção da mãe: não sei. Enfim: só sei, e ainda muito mal, daquilo que vivi: era para mim um pequeno paraíso, um paraíso que nunca tive tempo, oportunidade, de ver quais seriam as consequências de tê-lo habitado. Na verdade, isso me faz pensar que não sei muito bem como criei gosto pela literatura: só sei que houveram momentos-chave: o término do namoro com a Lori e ler o "Tom Jones"; vir para Florianópolis e ler o "A Montanha Mágica"; morar no Ribeirão da Ilha e ler o "O Homem Sem Qualidades". Teria sido cada um desses momentos um retorno a Lagoa, a sua solidão e paz, a sua calmaria e conforto, ao seu equilíbrio e bem estar?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

 Desde que me conheço vou a psicólogos. Há décadas tenho depressão. E praticamente todo dia penso em suicídio.


E de alguma forma me acostumei - malgrado as recaídas - a essa realidade. Aprendi (e continuo aprendendo) a dialogar com a depressão, com meus traumas e fantasmas, minhas fobias e ressentimentos e os meus ódios tal qual fossem as minhas infâncias, adolescências e adultências implorando por país que as criem, e volta em meia sinto a enorme angústia deste caminho, de enfrentar e aceitar as minhas impotências e cultivar sobre elas a vontade de viver como quem dá carinho a alguém que chora e, se sentindo acolhido, encontra forças para dar passos, ora rápidos, ora tímidos, para continuar.


Fala -se muito de amor, e nisso se cria a fantasia, expectativa, de se esperar um amor. Nada mais ilusório: não há ninguém, exceto se for para lembrar de tuas imperfeições e se divertir com isso - e descobrir que essas pessoas são tóxicas para mim, para os outros e, sem que elas percebam, para elas mesmas. Só se pode confiar em si mesmo, em cultivar sua própria independência, em caminhar com as próprias pernas: estas são concretas, reais, estão aqui e agora, e na medida em que se aprende a caminhar vai aprendendo a se amar - sem que espera que o amor de si desperte, sem esperar que algo em si mesmo irá salvá-lo: só existe a ação, tudo o mais simplesmente ocorre espontaneamente.


Aliás, a própria vida, existência, é inútil. Não existe um sentido, nada que trará um porto seguro, nem mesmo o navegar é preciso: não há mapa, não há porto seguro, só existe a realidade complexa, a sociedade e pessoas contraditórias e a imaturidade cheia de ignorância e confusão. Criar um sentido é só se afundar ainda mais numa miragem, nas cadeias fantasiosas da imaginação, como se houvesse saída fácil para o desespero. Aceitar a inutilidade é se tornar consciente, e é viver desenvolvendo o próprio equilíbrio na medida que se encontra, que se envolve, consigo mesmo. Não que exista uma identidade, e sim um encontro radical com as possibilidades da experiência, integrando as formas a substância, i.e., a própria totalidade da concretude. Basicamente: se aprende a conhecer, a agir e a se divertir quanto mais amplia e integra as diferentes perspectivas da existência.


Isso poderia ser chamado de arte. Entretanto, a arte é chamada de arte justamente para ser distinguida de tudo que é dito "útil". No momento em que se descobrir que o útil é ilusão talvez deixemos de chamar a arte de arte para simplesmente percebemos a inutilidade do existir, e finalmente assim vivamos o prazer de quão inútil é tudo.