segunda-feira, 28 de março de 2022

Estranho

O estranho não é nem normal e nem se adapta.


O estranho é um tão diferente que os outros não conseguem estabelecer uma base comum onde seja possível definir aquela pessoa, e assim conseguir enfim interagir com ela.


E por que isso?


As pessoas estão tão acostumadas a normalidade que não conseguem sair disso: seria preciso romper, desnaturalizar, seus comportamentos, assumir a necessidade de novas reflexões e novos desenvolvimentos.


O mais estranho, talvez, seja o indivíduo que formalmente aparente ser normal e que ainda assim ninguém consiga entender como é tão grande sua diferença para com os demais. Ele não é fisicamente nada bizarro (talvez até possa ser uma pessoa bonita ou mesmo muito bonita), ele é capaz de falar com as pessoas, mas ninguém entende o seu mundo - embora ninguém possa acusá-lo de ser louco.


E por isso mesmo me parece que a sociedade poderia considerar o Asperger o estranho por excelência: ele não é nenhum surdo-mudo, ele é capaz de falar e, portanto, de se comunicar com os outros, mas as pessoas não entendem como essa fala consegue ser tão diferente, essa interação seja tão diferente, como se a fala não fosse simplesmente um idioma diferente, e sim refletisse um ser completamente diferente com uma visão também totalmente diferente. Em fato, a sua visão reflete o que ele é, e sua visão, seu ser, se reflete em como ele interage com os outros.


A sua fala também não é a de nenhum louco: ele não fica misturando alhos com bugalhos como se estivesse delirando, falando coisas sem sentido, sem coerência, alguma. É simplesmente que o seu ser não se encaixa nos padrões estabelecidos, e isso com todos se questionando como alguém que, aparentemente, corporal e mentalmente não tenha deficiência alguma, alguém capaz de de se movimentar eficientemente e também de falar racionalmente não seja simplesmente como os demais. Daí de duas, uma: elas tentam se aproximar mas buscando, até inconscientemente (isso quando elas dizem que são empáticas e que respeitam o jeito de ser do outro), forçar nele os padrões delas, ou simplesmente se sentem incapazes, até mesmo medrosas, de interagir com alguém assim, e para mascarar suas próprias impotências e medos se sentem na necessidade de ofendê-lo como o problema fosse ele ("Eu não sou fraco, ele que é estranho") e não a falta de maturidade delas.


Inclusive causa ainda mais estranheza se a pessoa é considerada "inteligente" (ou seja: o que a sociedade considera como inteligência: o pensamento acadêmico, intelectual): "Pode pode alguém tão inteligente não ser, não agir, como a gente?" (o que, aliás, acaba sendo motivo para sofrer ainda mais discriminação pois só reforça a impotência e medo que os outros sentem diante dele). A única exceção feita a regra é se o indivíduo acaba por demonstrar ou desenvolver carisma: aí ele não é mais simplesmente um "estranho", e sim um "gênio" (ainda mais se sua especialidade for o campo lógico-matemático, esse "universo reservado só para os eleitos, sábios, esses seres especiais que estão numa linguagem, realidade, além de nossa compreensão"): "Ele é estranho porque está acima de nós, meros mortais que o admiramos e invejamos" (o que, ironicamente, pode ser outra forma de discriminação: a pessoa colocada num pedestal, num grau inacessível, e portanto contribuindo para uma existência, uma vida, solitária - e os outros exaltando essa sua solidão como um reflexo do ser "incrível" que ele é).

quarta-feira, 9 de março de 2022

Situação atual, passado e indefinição

Nessas horas seria bom estar com uma namorada.

Uma parte de mim quer caminhar, pedalar, agora, e outra parte de mim quer ficar em casa, quer deitar na cama e ficar relaxando.

Mas.

Tivesse uma namorada.

Ela poderia me puxar para caminhar com ela.

Caminharíamos e conversaríamos.

Ou ficaríamos em silêncio e caminhando.

De qualquer forma, seria muito bom.

No meu estado atual, é como se eu só tivesse disposição para ficar no meu canto.


Tá.

Vou tentar ver se pedalo um pouco.

Senão só vou conseguir ficar deitado em posição fetal querendo sentir algo de mim no caso mais drástico de zona de conforto, como se, ao ficar em tal posição, eu só pudesse ficar me acolhendo, como um criança carente de afeto.

Quando adolescente ficava ansioso querendo jogar vôlei, futebol, basquete, o que seja.

Ia até o terraço de casa para olhar, a noite, se a luz da quadra dos mórmons estava ligada.

E, claro, ia se estava acesa.

E me sentia contente gastando a minha energia.

E melhor ainda se ganhasse.

Agora...

Agora sou só eu.

Nenhum jogo, nenhuma diversão.

Nada para se vencer ou perder.

Para me sentir desafiado.

Para que eu precisava de desafio?

Para confirmar minhas capacidades?

Para confirmar inclusive que eu podia mais do que os outros, e portanto me sentir mais seguro de mim?

"Ninguém pode comigo, ninguém pode me vencer, ninguém pode me ameaçar"?

Uma vez fiquei extremamente orgulhoso.

Quando alguém me elogiou jogando futebol.

Que eu enfrentei na raça todos os adversários.

E ganhei.

Eu me senti invencível.

Com pleno gosto pela minha força.

Minha potência.

Minha capacidade de ser.

Para onde foi tudo isso?

Só posso sentir isso sendo desafiado?

Não posso saborear a vida por livre e espontânea vontade?

Sem precisar vencer?

E desenhando?

Eu também queria ser o melhor.

O melhor projetista.

Para saborear o meu sonho.

E ninguém me tirar dele.

Sonhos.

Vitórias e derrotas.

É assim tão banal?

Precisar sempre vencer?

Sempre com e contra um outro?

"Podem tentar me derrubar, mas eu sempre vou vencer?"

E daí vem a questão: para que alguém tentaria me derrubar? Para que pessoas tentam derrubar umas as outras? Para que faziam bullying comigo? 

E eu me sentia um herói: eu queria me sentir o mais forte, o mais capaz, o mais inteligente.

E eu vendia essa imagem.

Provocando e cultivando e recebendo provocações.

Projetar no outro "O Inimigo".

A minha vingança.

Contra todas as hierarquias.

Para eu estar no alto.

E ser O Modelo.

O Bom.

O Bom que todos tentaram sufocar, matar, destruir.

O Bom mais capaz, mais sensível, com todo senso de justiça.

Vencer era justiça.

Vingança.

Ressentimento e vitória.

Ressentimento e inimigo.

Ressentimento e o prazer de fazer o outro se sentir incapaz, de eu ser invencível, de tudo que tentassem contra mim estar fadado ao fracasso.

Daí toda ansiedade.

Daí todo conflito e busca de conflito.

De confronto.

Bater de frente.

"Se os outros podem, por que eu não?"

Curtir a vida.

Sem vitórias ou derrotas.

Sem a grande figura do Outro.

Do Inimigo.

Apenas a minha própria companhia.

E também.

Sem a grande figura da Vítima.

E do "Amor", da garota me protegendo e dando afeto, compadecida de mim como O Coitado.

Bate e se sente O Tal.

Apanha e chora pro colo da Mãe.

Será que viver é só isso?

Ser um corpo também

Recuperar a capacidade de agir

Recuperar a capacidade de sentir


Não ser só uma mente que pensa, que reflete, que lê, que busca conhecimento, que se culpa da própria ignorância e do que fez e não fez e que se vê como um nada procurando se preencher, se construir, como se algum belo dia as nuvens se abrissem e finalmente fizesse um sol calmo, um céu azul cativante, um silêncio tranquilo.


Não basta só sentir.

Sentir sem agir é arrependimento.

Arrependimento que vai cultivando esse nada.

Nada.

Nada de despersonalização.

Nada de desrealização.

Nada que caminha

Caminha 

E caminha

Para o vazio.

O sufocante vazio.

O vazio sem volta.

O sentido do não-sentido.

Para o desaparecimento de qualquer sonho e instinto.

Para a morte.

A morte não é um belo anjo e nem um terrível demônio.

A morte é o indefinido.

Indefinido cuja única forma visível é o caixão.

Ninguém vive a morte.

A morte não existe.

É o eu que não mais existe.


Para agir

Para sentir

É preciso um sonho

É preciso instinto

Para seguir em frente

Para caminhar com os pés no chão

Um pé aqui e outro lá

Um pé lá e outro aqui

Assim

Com calma

Concentrado

Querendo sentir

Querendo agir

E agindo e sentindo

E vivendo

E se sentindo vivo

E querendo estar vivo


Não pedi para existir

Não pedi para estar nesse mundo

E muito menos nesse tipo de sociedade

Por mim

Que os mortos enterrem seus mortos

E me deixem em paz

O desejo de me envolver cada vez menos

Para viver num mundo só meu

De sonhos

Sonhos concretos

Como uma chácara no interior

Meus livros 

Um lugar frio

Com natureza

Com rios

Nada do clima tropical

Em suma: um lugar confortável

Para poder pensar

E também agir

Sem me cansar

Para dormir de cobertor

Para me esquentar numa lareira

Para tomar um bom chá quente

Comer uma torta ou bolo

E me dedicar

Ao meu pequeno, suficiente, paraíso

E finalmente poder ser

Sem mais, nem menos

Com minha arte