O escritor já está em terra firme, já está, em tese, junto dos outros. O náufrago, seja no mar ou mesmo numa ilha ou costa deserta, está isolado de todo mundo humano: mais do que um mundo de sobrevivência do próprio estômago, é uma luta constante pela integridade da sua psiquê, pelo solo firme do seu eu. Se este eu não é também um outro, alguém capaz de fornecer companhia a si, ele morre.
E o escritor? Vê pessoas: onde mora tem vizinhos, nas ruas têm transeuntes aos milhares, milhões e, englobando todas as vizinhanças e ruas do mundo, bilhões. Mais do que nunca, atualmente, dizem estarmos conectados: correios, telégrafo, telefone, rádio, cabos submarinos, satélites, internet. Mas tecnologias fazem algo? Elas são alguém, ou são um meio? Certo aquele que respondeu "meio": são as pessoas o "alguém", elas que usam essas tecnologias todas. Mas isso basta para efetivamente estarmos conectados? Afinal, o que é esse "estar conectado"? Se ninguém compreende o que o outro quer dizer ou mesmo se as normas para se fazer a comunicação lhe são desconhecidas, sinto muito: o que existe é o mais puro, absoluto, ostracismo, essa cadeia invisível, esse exílio para o meio do nada, enfim, esse naufrágio. E justamente porque está junto dos outros ele não parece um náufrago e, assim, não entendem estar emitindo desesperadamente um SOS. E tampouco ajudaria estar vestido em andrajos: seria reconhecido apenas como mais um morador de rua, um "vagabundo", um "vadio". Agora se uma pessoa está no meio do que todos efetivamente reconhecem ser "um nada", algo no meio de "lugar nenhum", que realmente é visto como "estar sozinho/isolado/perdido", e emite seu SOS e, por um golpe de sorte, este é visto ou ouvido ou lido, este recebe a ajuda vista como necessária para se juntar aos outros - o que não necessariamente é o que o náufrago vê como necessário para si, ainda mais quanto pior a sua condição psíquica (mas mesmo assim é mais socialmente perdoável seu sofrimento do que daquele que sempre esteve junto dos outros: "Ele sim passou por maus bocados; você, não").
Em suma: tal como alguém com um osso quebrado, com algum sofrimento perfeitamente visível, o náufrago tem seu acolhimento. Uma pessoa com o corpo íntegro (ou aparentemente), que nunca se afastou de onde estão os outros, e ainda assim não está integrada, só pode ser vista, minimamente, como estranha: "Teve e tem todas as facilidades, nunca verdadeiramente sofreu nada, e ainda assim diz estar mal, não faz sentido" (admitindo, claro, que essa pessoa tenha vindo de uma classe social minimamente equilibrada materialmente e, portanto, sem ter vivido as mazelas da pobreza - afinal, mesmo o sofrimento do pobre é, em algum grau, socialmente aceito).
Se, a despeito de toda ajuda, o náufrago não melhora, começam a ocorrer as críticas - exceto, claro, se ele tiver piorado a ponto de ser reconhecido como louco, o que também é um sofrimento respeitado e, assim, aceitado. Porque a ajuda, a integração, sempre ocorre da maneira como a sociedade permite e reconhece como válida e aqueles que se consideram benevolentes e são reconhecidos como parte integrada, "produtiva", dela se alimentam disso e não admitem a diferença. E para nosso náufrago recolhido existe um prazo determinado para sua melhora e retorno, "produtivo", a sociedade. E pior: como se trata de alguém que teve uma exposição midiática sofre a pressão desta para sua volta a interação normal, "saudável", com os outros. E no caso do nosso companheiro que nunca se afastou, que sempre esteve aqui, este sofre a pressão condizente a sua classe e círculo sociais (e em certo caso tanto pior para as classes menos abastadas, vistas por todos como aqueles que de fato precisam se inserir, "trabalhar": "Se você tivesse nascido numa família rica poderia ficar vagabundeando o dia todo, mas nós que somos pobres temos que nos virar!" - sem nunca ter ocorrido aos pobres que estes poderiam lutar para todos terem sua liberdade, e portanto satisfação material e tempo livre, pois tal luta é individualizada e, assim, o status quo mantido e reforçado: "Se eu me tornar rico vou poder também ser livre"). Alguém da classe média, esse pobre que não sofreu como os pobres paupérrimos mas também não é rico como os ricos para "ser livre", é justamente o mais discriminado se não se integra: "Sempre teve tudo a mão, nunca passou fome e dificuldades, e está aí de bobeira". Alguém rico, alguém que administra razoavelmente suas finanças, e não se integra é visto belamente, poeticamente, como "excêntrico" (e melhor ainda se se aventura em experiências também vistas como excêntricas, alimentando assim uma imagem socialmente divertida, curiosa, interessante).
Ah, o escritor. O escritor rico pode ser visto como um intelectual, uma pessoa sofisticada, alguém benevolente ou mesmo um excêntrico - ou tudo isso ao mesmo tempo. O escritor pobre é reconhecido por estar expondo ou mesmo denunciando a condição e sofrimento dos pobres e da pobreza, e assim visto como alguém que luta pela justiça. Esses são seus papéis. E o escritor de classe média? Uma vida material relativamente confortável - mas sem a liberdade dos ricos - faz o que? Se luta pelos pobres muitas vezes é acusado de estar tomando destes uma luta que só é deles, pois só os pobres sofreram e sofrem o que é da sua classe. E se não "trabalha" é visto como um estranho (ou vadio, vagabundo e coisas piores) - exceto, claro, se se tornar um acadêmico, e portanto inserido numa instituição "respeitável" (ou se escrever no tempo livre do seu "trabalho", da sua "produção"). Em suma: qual é o que dá justificativa para a pessoa, escritor, de classe média, escrever? Com o que sofre a classe média? Assim como o pobre, com a necessidade de trabalhar, pois seu capital não é suficiente para viver dos rendimentos sobre este. E tal como o rico, com certas violências sutis, violências que não são vistas diretamente, não estão como chagas no corpo: são as violências de toda mesquinharia, as violências psicológicas dos que vivem para o ter, ter e ter: poder, dominação, status. Tais violências, pelo contrário, são vistas como "meritocracia": "Os fracos perecem e devem perecer, os fortes ficam e devem ficar". Eis, assim, o que chamam, "saudavelmente", de competição, concorrência: fazer o possível para usar e/ou destruir os outros e, assim, "se dar bem". E aí volta a questão do rico excêntrico ou mesmo de certos escritores da classe média: não se integrar é não competir, não concorrer, não querer mais, mais e mais - e por isso mesmo muitos desses ricos escritores ou parte dos da classe média, esses "excêntricos" ou "estranhos" (ou "vagabundos", "vadios", etc), escrevem sobre a vida poeticamente, tranquilos em sua condição esplêndida ou relativamente confortável (ou alguns vão para as lutas sociais, tão lindamente empáticos com os menos favorecidos - algumas vezes cabe o sarcasmo, algumas não: eis a diferença entre os que agem simplesmente com filantropia e os que efetivamente querem mudar a coisa toda radicalmente, e daí a diferença entre a "benevolência" e a empatia de fato: uma não altera em nada o status quo e sim só reforça, enquanto a outra compreende, no mínimo, a necessidade de reformas sociais, estruturais, ou mesmo a transformação radical). A classe média, assim, é ameaçada pela ascensão dos pobres e pela pressão dos ricos: ricos e pobres são "competidores" contra a classe média, seja pela tentativa de impedir seu enriquecimento, seja pela possibilidade de seu empobrecimento (e como ela mesma se abastece dos pobres para serem seus trabalhadores e sua potencial ascensão, logo se coloca junto aos ricos quando algo ameaça os custos de possíveis direitos aos pobres - pois para ricos e classe média toda gente pobre se resume a "custo").
Mais "excêntricas" ou "estranhas" (ou "vagabundas", "vadias", etc) ainda são as pessoas ricas ou de classe média que escolheram o caminho de uma "pobreza confortável" ou, melhor ainda, de uma vida minimamente digna. Isso se vê bastante entre aqueles que abandonaram a vida nas cidades e resolveram viver uma "vida simples", apenas com o "essencial" - e daí muitas vezes compram uma terra no campo e se dispõem a cultivar seu próprio alimento e a fabricar seus próprios utensílios e materiais. Estes inclusive são vistos como gente que escolheu o naufrágio, esse isolamento da "civilização" - sem reconhecer que a própria civilização, tão "civilizada", alimentou e alimenta isso. Talvez aí possa existir um Thoreau escrevendo sobre as vantagens e belezas de uma vida assim - inclusive sobre o intercâmbio "necessário", "mínimo", "essencial", a se manter com a "civilização" -, ou também possa haver gente como um Kerouac, fazendo bicos aqui e ali sem estar preso a nada e vivendo e poetando sobre suas infinitas experiências, seus inúmeros "naufrágios".