sábado, 9 de maio de 2015

Sofrimento - III

Era uma floresta bastante verdejante, e as folhas farfalhavam felizes como que comemorando a conclusão de minha nova casa. Sim, infelizmente tinha derrubado um tanto das suas companheiras árvores para a construção desta, e iria fazer jus a tal sacrifício na medida que ali, em meu ninho de vida e morte, cultivaria tanta arte e alegria em minha investigação sobre o que é o coração humano e como alcançá-lo. Embarquei nesse caminho quando tinha 6 anos, sendo uma criança um tanto solitária e vista como estranha por seus pares na escola, e devido a isso tomada por tais companheiras como motivo de chacota. "Não seria mais fácil se todos fôssemos amigos?", o que implicitamente significava "Para que toda essa violência?". Fui dar conta de que eu era eu justamente nessa época: com a descoberta do que me interessava (desenhos) e com o reflexo do mundo que se apresentava a mim berrando sobre a existência dele e de mim estando nele, seja como uma intrusão dele em mim, seja como eu o invadindo.

E a casa estava pronta. Finalmente. Parei um tempo apenas a observando. Estava linda, tão linda, pois era toda natureza e fruto da minha capacidade. Finalmente eu conseguia terminar algo, finalmente estava a gozar do fruto do meu trabalho.

Sim: finalmente, finalmente, finalmente. Trabalho, trabalho, trabalho. Era uma felicidade tão plena que só conseguia sentir o cheiro da natureza misturado ao da madeira do meu lar. Viciante: uma atmosfera de sonho - "mas sonhos não têm cheiro..." (voz de criança); "tem sim, é só saber abraçar que sentirá não só isso como o calor de se sentir amado" (quem, quem, quem?! alguém, algo, um sentimento, uma pessoa, uma voz que me acolheu em seu colo e me fez chorar, me deu paz e carinho, e eu lhei dei um sorriso e lágrimas tão belos quanto aquele riacho cheio de pedras e brilhos de suas águas iluminadas pelas frestras de luz que escorriam entre os galhos como um caldo abundante de vida).

Entrei: tinha também eu mesmo feito os móveis: equilíbrio lindo de rústico e delicado, como a harmonia entre o selvagem e o cafuné gostoso nos cabelos numa tarde morna. Fiz um chá de amora e sentei-me em frente a lareira. A lenha queimava, sem pressa, como fosse durar eternamente tal qual uma estrela que, mesmo todos mortos, ainda fica lá a arder e dar brilho aos transeuntes com ou sem consciência cosmos adentro por tantas gerações que a todos parece nunca acabar. Contemplava o fogo: havia alguma verdade ali: o aconchego, o ninho onde eu posso ser eu. Aromas da fogueira, sabores do chá, espaço da casa e dos móveis, e a poesia da existência dos livros ali, espalhados pelo chão, estantes e mesa. Ah, e tinha aquele ali, em cima do sofá, tão importante para mim, e que decidira queimar para respirá-lo como um xamã invocando espíritos de todas as eras.

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