sábado, 14 de junho de 2014

Sofrimento - I


Olhava a chuva que caia lá fora. Tinha 8 anos e era seu aniversário, e pela janela lágrimas escorriam, e só lembrava do vazio, do sentido de nada que a vida parecia lhe trazer: era o dia em que sentia perder sua angicalidade, embora na época tivesse um conhecimento apenas sensível disso através de seu coração cheio de peso sufocante: o brilho de suas asas sumia no cinza das nuvens, e seus olhos eram opacos como a superfície de um espelho a refletir o ar, como um vento gelado soprando para longe sua alma.

O cheiro da tormenta, que sempre lhe agradava, não alcançava mais seus sentidos: incapaz de amar, mas ainda impotente para odiar, tudo lhe soava com a indiferença duma ferida que, há tanto aberta, se acostumou a ignorar, e ainda assim a vivenciava na medida que aprofundava seu silêncio e sua solidão.

Embora tivesse pouca idade, era mais velho do que isso: era, como os outros, um ser humano, e por isso chorava todas as histórias, as tinha impregnadas na carne cujos rios de sangue denunciavam todos os sentimentos e emoções que foram derramados e continuam a jorrar pelo mundo e, como fora insuficiente sua orientação - convenhamos: desde quando a Humanidade, essa pobre coitada, teve alguma vez alguém que a educasse adequadamente? ela até criou pais fantasiosos, deuses, para lhe dizer o que fazer, e como eram produtos de sua imaginação eram tão contraditórios quanto ela - , mesmo tendo inicialmente toda sua pureza, todo seu amor inocente e ingênuo, não sabia como dialogar com a loucura que, se não corrompe a pessoa, a deixa tão sozinha de si mesma que não mais consegue reconhecer o que de fato era essencialmente seu coração.

Amar, buscava: não entendia a violência, queria todos amigos, e por anos tentou dar carinho. Tinha, naqueles tempos, seu feminino e masculino em plena harmonia: a mulher em si para abraçar os corpos e lhes dar sensibilidade e compreensão, e o homem para dar a mão quente a todos e despertar liberdade e segurança nas almas. Era delicadeza e potência, embora lhe faltasse apenas uma profunda realidade: não era corpo.

Na medida que foi se humanizando foi perdendo seu daimon, e aí foi se tornando tão antigo quanto todos, ou talvez mais ainda, pois o corpo que fora ganhando era, devido sua sede de saber, de querer entender para poder amar, tão infinita, de tantas dimensões, a reunião de todas as esperanças perdidas, dos corpos realmente autênticos, cujos brilhos, tão intensos, tão sinceros e espontâneos, eram como as infâncias abandonadas, as crianças que não sobreviveram a sua própria antiguidade, e que procuravam, a todo custo, ganhar uma alma realizando, pelo desespero, a transcendência para algum Paraíso Perdido: Lux Ferre.

A sua materialidade, a sua conversão em criatura de pão e vinho há muito fermentados, lhe deram, aquela época, um quê de tristeza imensa, de recordar quem era, e tal era infrutífero seu esforço que lhe foi ocorrendo de se encher de revolta: ansiava negar o que estava herdando, e isso, para seu desgosto, só mostrava fortalecer o que estava ocorrendo.

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